A casa de Camões está em Constância

A casa de Camões está em Constância

A relação da população de Constância com a figura do grande escritor português é inquestionável e genuína. A época quinhentista na qual viveu, está enraizada na identidade colectiva do concelho.

Os países reconhecem e homenageiam os seus grandes escritores. É uma afirmação cultural e de identidade. Se Espanha tem uma casa de Cervantes, se Inglaterra tem uma casa de Shakespeare, se Itália tem uma casa de Dante, porque é que Portugal não pode ter uma casa de Camões? Para que Portugal a tenha, porque ela existe, é preciso que a pequena Associação Casa-Memória de Camões, que vive no pequeno município de Constância, com limitados recursos, tenha os apoios devidos para dignificar o nome de Luís Vaz de Camões e a cultura portuguesa.

António Matias Coelho, historiador e presidente da Associação Casa-Memória de Camões

António Matias Coelho, historiador e presidente da Associação Casa-Memória de Camões

Camões é um dos pilares da identidade de Constância, que se encontra ao mesmo nível dos rios, da tradição dos transportes fluviais ou da Senhora da Boa Viagem. As Pomonas Camonianas, que começaram em 1994, são a maior expressão desse afecto. Entre os dias 9 e 11 de Junho, a vila recria o ambiente renascentista com figurantes trajados a rigor.

A relação de Constância com Luís Vaz de Camões remonta a meados do século XVI, aos anos 1547 e 1548, quando o escritor terá vivido na sua juventude na povoação de Punhete, agora conhecida como vila e concelho de Constância. Por esse motivo um grupo de entusiastas da obra do poeta decidiu criar a Associação Casa-Memória de Camões para homenagear a obra do maior autor português de todos os tempos, a língua e a cultura portuguesa.

  • fachada do edifício da Casa Camões em Constância
    fachada do edifício da Casa Camões em Constância
  • fachada do edifício da Casa Camões em Constância
    fachada do edifício da Casa Camões em Constância


    Separador

    Um grupo de entusiastas da obra do poeta decidiu criar a Associação Casa-Memória de Camões para homenagear a obra do maior autor português de todos os tempos, a língua e a cultura portuguesa

    Não existe prova documental da presença de Camões em Constância. A Associação Casa-Memória de Camões sabe-o. Nem o afirma, nem o reivindica. O que sabe é da existência de uma tradição popular que chegou até aos tempos de hoje. “Se o povo fala com tanta veemência, alguma razão terá”, diz António Matias Coelho, historiador e presidente da Associação Casa-Memória de Camões. Essa tradição está documentada desde 1880, quando a Câmara Municipal reuniu para se associar às celebrações do terceiro centenário da morte de Camões, argumentando em acta que se associava à efeméride não apenas por concordar com os propósitos da iniciativa mas por se dizer que, segundo uma muito antiga tradição, Camões terá vivido nesta povoação.

    Vários estudiosos analisaram esta tradição. No século XIX, o visconde de Juromenha, um historiador especialista em Camões, estudou a veracidade da história e inclinou-se para o facto de Camões ter vivido em Constância. Já no século XX, duas pessoas foram fundamentais para manter viva esta tradição. A primeira foi um médico de Constância que acreditou na tradição popular e fez tudo o que estava ao seu alcance para credibilizar e divulgar esta história. Fez colóquios, publicou livros e organizou visitas a Constância. Foi numa dessas visitas que conheceu Manuela de Azevedo, redactora do Diário de Lisboa. A primeira mulher jornalista a ter carteira profissional em Portugal fez a cobertura da visita. Achou tão interessante a história e a forma como a tradição popular era vivida e transmitida pelas pessoas da vila que ganhou um grande carinho às pessoas, à vila e à história de Camões ter vivido em Constância numa casa quinhentista junto ao rio.

    Os bens da associação são ícones da vila

    Manuela de Azevedo acabaria por dedicar metade da sua vida a esta causa, fundando em 1977 a Associação Casa-Memória de Camões. Em parte, graças aos seus contactos e influências, a associação conseguiu três bens patrimoniais, todos eles da melhor qualidade para a terra.

    • A maior esfera armilar existente em Portugal, pesa meia tonelada, oferecida pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa
      A maior esfera armilar existente em Portugal, pesa meia tonelada, oferecida pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa
    • O Jardim-Horto é único. É um monumento vivo a Camões, uma homenagem ao escritor através das plantas que ele refere na sua obra
      O Jardim-Horto é único. É um monumento vivo a Camões, uma homenagem ao escritor através das plantas que ele refere na sua obra


      O primeiro é a obra escultórica do mestre Lobo Henriques. A obra é um ícone da vila e o lugar mais visitado de Constância. “Não há ninguém que visite Constância e que não se sente junto à estátua para tirar uma fotografia”, diz António Matias Coelho.

      O segundo bem patrimonial é o Jardim-Horto de Camões, projectado pelo arquitecto paisagista Gonçalo Ribeiro Telles. Não se trata de um jardim ornamental. Mas uma forma original de homenagear Luís Vaz de Camões, através das plantas que refere na sua obra, tanto plantas mediterrânicas como plantas exóticas.

      O terceiro e último bem patrimonial que Manuela de Azevedo deixou à associação foi o edifício da Casa-Memória de Camões. Trata-se de uma construção nova sobre as ruínas consolidadas da casa que a tradição popular diz ter sido a casa de Camões. “Essas ruínas foram muito afectadas pelo ciclone de 1941, não podiam ser recuperadas, pelo que se optou pela consolidação e classificação como imóvel de interesse público e a construção de um edifício novo, projectado pela Faculdade de Arquitectura de Lisboa”, explica o historiador e presidente da associação.

      Trata-se de um edifício de cinco andares, funcional, onde um dos pisos é a preservação da casa quinhentista onde Camões terá vivido. Dessa casa quinhentista, há documentação inequívoca de ser do século XVI, que demonstra a construção de uma casa nesse local. Há também um estudo feito pelo arquitecto Jorge Sobrado, em meados do século passado, em que se atesta que os materiais e as técnicas de construção dessa casa são do período quinhentista. A Associação Casa-Memória Camões não pretende enganar ou mal informar. “Não há provas documentais da vivência de Camões nessa casa”, conta o nosso interlocutor, o que afirmam com total certeza é que “a reconstrução no piso térreo do edifício Casa-Memória é de uma casa quinhentista”.

      Sobre esta casa quinhentista existe um novo edifício, com inúmeras potencialidades, que poderia servir, não apenas a vila de Constância, mas toda a região do médio Tejo e o País, como a Casa de Camões que Portugal não tem. Ela existe, mas não está disponível nem acessível por falta de apoios. Essa é a razão pela qual o edifício se encontra fechado ao público.

      O que é necessário para abrir a Casa Camões ao público?

      “Não queremos enganar as pessoas. Não queremos inserir em prospectos turísticos uma Casa-Memória de Camões aberta ao público, onde o visitante entre e quando saia se sinta enganado, dizendo que malgastou o seu tempo e dinheiro.”

      António Matias Coelho diz que a associação tem uma ideia muito precisa do que é necessário para abrir este espaço ao público. Essa visão já foi transmitida ao Ministério da Cultura. Propuseram, para cada um dos cinco pisos existentes, a definição dos conteúdos que a casa deveria comportar. Isso seria o ideal. A casa poderia abrir não com a totalidade desses conteúdos, mas com uma parte significativa. Para o nosso interlocutor seriam indispensáveis três aspectos. Em primeiro lugar, uma exposição que aludisse a Camões, que falasse da vida, da obra e da relação de Camões com Constância. A Associação tem alguns objectos que podem ajudar a compor esses conteúdos, mas não são suficientes. É necessário fazer um projecto museográfico e fazer esses conteúdos.

      • Gualter Vasco, director fabril da Caima, com António Matias Coelho no pavilhão de Macau existente no Jardim-Horto de Camões
        Gualter Vasco, director fabril da Caima, com António Matias Coelho no pavilhão de Macau existente no Jardim-Horto de Camões
      • Obra escultórica de Camões do mestre Lobo Henriques
        Obra escultórica de Camões do mestre Lobo Henriques


        É preciso que uma parte da Casa-Memória fosse dedicada à eventual presença de Camões em Constância. A casa deve ter vida e ter quem a mantenha aberta, de uma forma qualificada. Seria necessário contratar uma pessoa qualificada, com conhecimento e formação para fazer uma visita guiada ao espaço e explicar o seu conteúdo.

        “Era possível abrir as portas desta casa com umas quantas coisas penduradas na parede, mas estaríamos a perder uma oportunidade única de homenagear e promover a vida e a obra de Camões e de Portugal na época quinhentista e, ao mesmo tempo, estaríamos a enganar as pessoas”, sublinha António Matias Coelho. O presidente da associação acredita que esta casa possui todas as condições para ter uma dimensão nacional. Para ele, se fizessem uma coisa qualquer, de menor dimensão, estariam a queimar etapas e a não fazer o trabalho adequado.

        A direcção da associação procura trabalhar em todas as frentes, local, regional e nacional. Sabe que é preciso ganhar a confiança das pessoas e das instituições e, para isso, é preciso mostrar trabalho feito. Isso é o que tem feito a Associação Casa-Memória de Camões, desdobrando-se em actividades na Casa-Memória e no jardim-horto.

        Poucos associados

        A associação é pequena, possui um número reduzido de associados, e o município está muito limitado financeiramente na capacidade de ajudar a Casa Memória-Camões. Todos os anos, desde que a direcção da associação tomou posse, em Abril de 2016, que a Caima apoia a Associação Casa-Memória de Camões. “Sem estes apoios não seria possível fazer algumas das intervenções necessárias para continuar a dignificar o maior escritor da literatura portuguesa de todos os tempos”, assume António Matias Coelho.

        Os patrocínios da Caima foram canalizados para a realização de obras no Jardim-Horto, que consistiram na substituição do piso, que se encontrava muito degradado, por calçada portuguesa. Essas verbas serviram para dar a margem necessária para poder contratar uma empresa de arquitectura paisagista, especializada em jardins. “Pela primeira vez, em 30 anos, os jardins levaram terra nova. Esses terrenos não eram fertilizados há três décadas. Há trabalho de jardinagem fundamental a ser desenvolvido porque não há jardim sem plantas ou flores.”

        Jardim é monumento vivo

        O Jardim-Horto é único. É um monumento vivo a Camões, uma homenagem ao escritor através das plantas que ele refere na sua obra. Uma visita a este espaço permite fazer uma viagem através das plantas, como se fosse guiado pela mão das plantas desde o Mediterrâneo até ao Oriente, tirando as espécies vegetais que não resistem ao nosso clima, que não são muitas. Há mais de 50 espécies referidas por Camões na sua obra, desde a oliveira, o loureiro ou a vinha, até plantas mais exóticas do continente africano e do asiático.

        Gonçalo Ribeiro Telles desenhou o jardim e o pavilhão de Macau, que na altura da sua construção contou com o apoio do governo de Macau, à época ainda sob administração portuguesa. Este espaço é uma evocação do universo do Extremo Oriente, da China. Evoca um pagode chinês, que está enquadrado por um conjunto de muretes, em forma ondulada, que representam simbolicamente o dragão chinês.

        O jardim possui um planetário ao ar livre, com um pequeno anfiteatro com óptimas condições acústicas. Está lá também a maior esfera armilar existente em Portugal, pesa meia tonelada, oferecida pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, para assinalar os 500 anos dos descobrimentos portugueses e a universalidade da língua e da cultura portuguesa. É o conjunto destes elementos que fazem do Jardim-Horto um lugar único a ser visitado. “O apoio da Caima é fundamental para a associação. Existe uma relação fraterna. Não se trata apenas, nem somente, de alguma relação de quem precisa e de quem pode. É muito mais do que isto. É uma relação que se estabeleceu entre a empresa e a direcção da associação”, conclui António Matias Coelho.  

        Uma parte do trabalho de investigação desenvolvido pelos arqueólogos industriais Jorge Custódio, Sofia Costa Macedo e Susana Pacheco, sobre os 130 anos da Caima, resultou na exposição 130 anos da Caima – De Albergaria a Constância – Portugal na indústria da Pasta de Papel. A exposição esteve aberta ao público na Casa-Memória de Camões, desde 16 de Novembro até ao passado dia 19 de Maio.